terça-feira, 24 de março de 2015



Eu poderia me sentar na ausência da sociedade. Desviar meu olhar para a janela de um horizonte alaranjado, desenhado de montanhas verdes musgo. Extensa grama. Vasto perfume das flores de campo, coloridas e harmoniosas. Ao ouvido o silêncio tocado pelo canto da natureza viva. E uma proposital música bonita. Não me importa agora se faz calor ou se o inverno está batendo à porta. Um branco papel. Além de uma bebida, da qual escolherei pela estação do ano que dança lá fora. Um suspiro, um vácuo preenchido. Datilografaria eternamente. Sem cessar. Tudo o que a alma grita. Frêmito. Seria então feliz. Com a vã solidão que sorri poesia. Me bastaria. Porque as palavras me alimentam. Me curam, me beijam. Eu poderia envolver-me eroticamente com cada uma delas. Porque escrever é um caso de amor. É um vício. Escrever é uma vida. Eu poderia me sentar na ausência da sociedade, mas nunca na ausência de minha própria alma que grita. Eu poderia. Não fosse meus olhos insanos por outros olhos. Minhas mãos insensatas por outras mãos. Meus braços incansados por outros braços. Então fico. Permaneço aqui. Desejos. E só deixo a alma ausentar-se quando a sós, nos sonhos da poetisa que não fui. Não serei. Por medo, ou desejo de nada ser que não um comum corpo que abriga minha lenta evolução. Eu poderia me sentar na ausência da sociedade, mas fico aqui, a sós, diante a imensidão de seres, que nada sabem sobre mim. Nem das palavras que, por amor, solto em liberdade para outras bocas beijar.

Rafaela Alves

segunda-feira, 23 de março de 2015

Pensamentos desconexos, incompreensíveis a outrem.




Esplêndido desejo. Somos eternos carentes, de dor e de carinho. Inquietudes nos alimentam, reclamações nos sustentam. Desequilibrados. Buscamos felicidade, sempre. Inevitável é a loucura. Sã em si, impulsiona a verdade. Ninguém na verdade sabe bem o que quer. Cada dia tem seu propósito, cada um tem sua esquerda e sua direita. Às vezes apagada, às vezes acesa. A luz nem sempre é uma questão de claridade. Somos obrigados a matar subitamente um leão por dia, semana talvez, o tempo se arrasta de vez em quando. Sirva-me algo pra beber, que seja mais forte do que os tapas na cara que o mundo dá. Aprendi a lidar com a dor. Não com o amor. Todo ser tem seus mistérios. É difícil decifrar alguém. Aliás, somos eternos dissimuladores. Máscaras não são só para carnavais. O mundo exige certo aprisionamento, pra quem não quer julgamento. Deixa pra lá, quero me despir. Minha nudez deveria calar a sujeira das críticas. Ser transparente é insanidade hoje em dia. Acho que queremos um pouco menos. Cresce o mundo, tecnologia, informação, mas o cérebro parece diminuir. Bendita corrupção. Aos seres humanos um abraço. Quero ser só um espírito em evolução. Que fiquem com o ouro e a mentira. Quero ser só um sopro nesse mundo de ignorância. Veja lá o céu. Quero voltar. Se eu ficar perdoe meu silêncio que ainda condena. Quero um beijo da humildade. Somos filhos da falsidade. Permita-se um pouco de liberdade. Só me amarre se for para arrepios. Quero prazeres. Mas, carrego a busca do sutil. Não se confunda com a minha confusão. Ando na noite pra ver se faço faísca na escuridão. Quem me dera ser como uma estrela. De dia tento vestir sorriso, falar e agir amor. A neblina permanece ainda que sol. O mundo ainda implora por carinho. Sou só mais uma. Somos sós. A solidão tem sido minha companhia. Às vezes a gente canta, às vezes eu choro pra ela. Coisas que ninguém vai entender. Vou voltar pra rotina. Vou fingir que tudo anda bem. Vou ver os jornais e não me preocupar com o estado terminal desse mundo. Não vou mover nenhuma palha. Sou uma revolucionária com preguiça. Me chamem de hipócrita. Eu cansei. Deixe chegar amanhã. Outro dia. Outros pensamentos. O que escrevi, jogue fora quando a noite chegar. Sou mais do que uma metamorfose. Só quero passar. E talvez chegar, onde eu ainda não sei. Quem quiser ficar que fique. Quem quiser seguir que siga. Quem quiser saber onde é meu destino, que enfim, me ame. Minha inconstância é fato, de exato só minha insensatez. Mas, se uma só certeza lhe bastar, e é a única que tenho sobre mim. Eu quero viver de amor. E só.


Rafaela Alves

segunda-feira, 16 de março de 2015


A verdade é que procuramos alguém que ouça nosso silêncio. Que saiba sobre as palavras, que de propósito a gente não diz. Mas, queria que soubessem. Alguém que saiba das lágrimas que caíram, enquanto não estava presente. Ou ainda tenha uma certa premonição quanto a isso, e esteja lá antes que elas caiam. Nós procuramos alguém que não tenha necessidade de dizer, só de olhar e sorrir. Um abraço, um afago cotidiado, uma rotina qualquer que nos faça ter um motivo. A verdade é que procuramos um amor bonito, queremos compartilhar. Queremos mais o desgaste do encaixe, do que a tediosa solidão.

Rafaela Alves


‘(...)
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa, as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
(...)
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
(...)
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.’


João Cabral de Melo Neto